Por Maria Frô
Outubro 27, 2014 17:08
Prometi
abrir o post hoje com a entrevista que fiz com Dorival Filho.
Não
cumpri a promessa porque acabei subindo dois posts, o do discurso da vitória de
Dilma e do rescaldo da eleição polarizada que vivemos.
Mas
esta entrevista, prometida desde ontem, estava aqui no rascunho, por algum
motivo respeitei o fato de o entrevistado nunca ter se “desnudado” como o fez
agora. Talvez por isso só tenha decidido publicá-la hoje.
E
por algum motivo lá no fundo de minha alma, sabia que ela seria importante
Dilma vencendo ou não estas eleições.
Sou
educadora e sim, toda a história de inclusão me fortalece, me reanima,
ressignifica minha vida.
Esta
é uma das histórias de superação mais bonitas que li e agradeço ao Dorival, por
ter vindo aqui no blog e comentar um post onde eu o
havia citado o que me permitiu encontrá-lo.
Apreciem
a beleza desta história, retrato deste novo país que estamos construindo que de
acordo com seu contundente depoimento o povo vai se tornando protagonista:
Talvez seja mais fácil ser otimista para quem nunca
precisou disputar o seu café da manhã com vários urubus, alegrar seus sobrinhos
com brinquedos desprezados e doces com validade vencida ou presentear sua mãe
com um vestido que alguém não quis mais usar e descartou no lixo.
Dorival
catava restos no lixão, hoje é doutorando da UFSC.
Ele
me conta que em sua infância havia dias que ia pra escola e não conseguia
escrever com as mãos feridas de cacos de vidro, cortadas no garimpo do lixão.
Hoje é cidadão.
Lutamos
para que nunca mais nenhuma criança tenha de sobreviver num lixão. Obrigada,
Dorival. Obrigada, povo brasileiro.
Onde você nasceu, quantos anos tem, conte um pouco esta trajetória. O
que afinal significa dizer ‘sair do lixão’? Vc foi catador? Explique este
contexto para os leitores.
Dorival G.S. Filho: Nasci em Piedade, interior de São Paulo em 1982.
Trata-se de uma pequena cidade próxima a Sorocaba. Infelizmente, a maioria das
oportunidades de emprego era na lavoura e a disputa por uma vaga era acirrada.
Na minha infância, trabalhei no corte de cebola e depois colhi morango por
alguns anos. Nesse período, tive que deixar de estudar para me dedicar só ao
trabalho na lavoura. Nessa fase da minha vida eu não consegui conciliar
trabalho e estudo.
Em 2001, em meio à crise
que o País passava, a única oportunidade de trabalho que encontrei foi no
lixão. Minha mãe era gari e a única fonte de renda da nossa família que estava
cada vez mais escassa, então, resolvi enfrentar o lixão. Lembro-me como se fosse
hoje, o cheiro forte, a companhia dos cães abandonados, os olhares vazios dos
catadores, e a disputa dos humanos com os animais pela comida, a cada caminhão que chegava
para despejar o lixo.
Aprendi que o trabalho
no lixão era chamado de garimpo e, logo, me adaptei ao serviço. Nunca imaginei
que o ser humano podia se tornar invisível, mas pode. Ao entrar no ramo do garimpo, me tornei
invisível.
Éramos como uma
comunidade a parte. Todos os dias, chegávamos às 6:00 para esperar o primeiro
caminhão. Enquanto aguardávamos, cada um falava o que estava precisando: roupas
de bebês para a filha grávida, dizia uma das garimpeiras. Hoje preciso de
sapatos para meus netos irem à escola, dizia outra. Eu sempre pedia que quando
alguém achasse livros que guardassem para mim.
Cada dia era uma
surpresa no lixão. Tinha dia que universitários iam fazer pesquisa e curta
metragens. Outro dia, iam políticos para nos tirar de lá, uma vez que a
prefeitura seria multada, segundo eles. Às vezes, senhoras a procura de uma
jóia da família que desaparecera ou papéis importantes.
Com o tempo fui
adquirindo mais experiência e já sabia identificar o lixo do rico e o lixo do
pobre. O nosso ouro era o cobre, mas qualquer coisa podíamos vender: relógios,
bijuterias, joias valiosas, etc.
Às 17:00 era o momento
de retornar para casa e meus cães (adotados do lixão) e meus sobrinhos já me aguardavam na esquina, os
primeiros a espera de comida, os segundos à espera dos brinquedos ou de doces
que eu encontrava. Após algum tempo no garimpo, resolvi que tinha que voltar a
estudar e assim o fiz, trabalhando de dia e estudando à noite. Não foi fácil!
Tinha dias que eu só ia para a escola para ouvir os professores, pois os
diversos cortes nos dedos causados
pelos cacos de vidro presentes nos sacos de lixo não me permitiam usar lápis ou
caneta sem tingir meu caderno de sangue. Consegui tantos livros que meu quarto se transformou numa biblioteca.
Pelos meus cálculos, eu adquiri mais de três mil livros.
Após muito incentivo dos
professores, em 2006, resolvi que queria fazer o curso de Letras. A professora
de português me falou sobre o PROUNI, então tripliquei os estudos, estava
decidido a deixar o lixão. Fiz o ENEM e o vestibular da UNESP. Após os três
dias de prova da VUNESP, tive a certeza que deixaria o lixão. Começava, a
partir daí, uma nova etapa da minha vida.
Você afirma que foram os governos Lula e Dilma que transformaram
sua vida. Como isso aconteceu? Que políticas desses governos beneficiaram
diretamente a sua vida?
Dorival G.S. Filho: Sim, esses governos tiveram e têm um papel
fundamental na vida da minha família e na minha. O “Bolsa Família”, por
exemplo, ajudou a complementar a renda familiar. Minha irmã recebeu esse
benefício do governo Lula e isso representou comida na nossa mesa, comida
comprada e não restos de comida do lixão.
Para entrar na
faculdade, eu me preparei pensando no PROUNI, mas felizmente não precisei
usufruir desse programa.
O Brasil passava por uma
transformação: meus irmãos tinham empregos e eu estava me graduando.
Para fugir da violência
de São Paulo, minha família se mudou em 2010 para Santa Catarina. Nesse mesmo
ano, eu terminei o meu curso e me licenciei em Português/Francês.
Hoje, recebo bolsa do
doutorado que de 2002 para cá cresceu 187%.
Poderia numerar os
diversos benefícios dos governo Lula e Dilma, mas não haveria espaço.
Para o candidato Aécio e antes também presente no discurso da candidata
Marina, sair da extrema-pobreza é só uma questão de mérito pessoal. E há muito
deste discurso circulando entre os ‘colonistas’ da Veja, por exemplo. O que
você tem a dizer aos jovens que repetem este discurso?
Dorival G.S. Filho: Garanto que não é só mérito pessoal. Vivi o governo de FHC e posso
afirmar categoricamente que se o PSDB estivesse no poder, eu ainda estaria no lixão. Não havia perspectiva de melhora no
governo tucano.
Falando pela minha
família, posso afirmar que havia fome, muita fome. O “Bolsa Família” significou
comida na mesa. A última vez
que fui a São Paulo, visitei meus companheiros de garimpo. Alguns,
infelizmente, já faleceram, outros vivem dizendo que eu sou o orgulho da
“família”. Todos são beneficiários do “Bolsa Família” e uma das garimpeiras tem
a sua casa pelo “Minha casa, minha vida”.
Aos jovens eu só posso
dizer uma coisa: você pode ser o mais esforçado, o mais otimista, mas se faltar
oportunidade e apoio o esforço será em vão.
Talvez seja mais fácil
ser otimista para quem nunca precisou disputar o seu café da manhã com vários urubus, alegrar seus sobrinhos com brinquedos desprezados e doces com validade vencida ou presentear sua mãe com um vestido que alguém
não quis mais usar e descartou no lixo.
Hoje, você está fazendo doutorado em uma universidade federal
em Santa Catarina, como isso ocorreu? Onde você se graduou, qual foi seu
mestrado e onde e como foi fazer o doutorado na UFSC?
Dorival G.S. Filho: Minha graduação foi na UNESP – campus de Assis, interior de São Paulo.
Fui com o dinheiro de um mês de aluguel, mas com milhões de esperanças.
Nos quatro anos de
graduação recebi ajuda de algumas pessoas e da minha família também. Consegui a
bolsa de auxílio que não era suficiente para cobrir os gastos, então, resolvi
trabalhar: até às 14:00 trabalhava numa lavanderia, depois junto com um
professor, fazia a divulgação do vestibular da UNESP, em seguida ia para a
faculdade à noite e, finalmente, exercia a função de cuidador de um senhor
idoso. Essa era minha rotina.
Minha família se mudou
para Santa Catarina em 2010 e ao terminar a graduação, resolvi também me mudar
para cá. Com o diploma nas mãos, comecei a lecionar em escolas públicas, mas eu
queria mais. Fiz o exame de seleção de Mestrado pela UFSC e passei. Tive que me mudar para
Florianópolis, pois consegui a bolsa na primeira semana de aula. Foram dois
anos intensos de estudos até que defendi a minha dissertação em setembro de
2013, em Semântica Cognitiva. O Brasil continuava se transformando e eu também.
Eu queria mais. No final de 2013, fiz o exame de seleção de doutorado e aqui estou.
Por que na área de Linguística? Se você fosse fazer uma leitura
semiótica do Brasil antes e pós Lula, qual seria o quadro?
Dorival G.S. Filho: Minha mãe sempre foi uma ótima leitora. Lia de
tudo e acabou me influenciando. Sempre gostei de ler, mas esse não foi o motivo
para eu escolher a área de Linguística.
O termo linguística
chamou muito a minha atenção no livro de Francisco da Silva Borba – Introdução
aos estudos linguísticos, o primeiro livro que encontrei no garimpo. Mas
acredito que essa ciência que investiga a linguagem humana em todas as suas
manifestações é, por si só, fascinante e isso me instigou. Claro que não posso
esquecer da minha querida orientadora na graduação que me mostrou a ciência
linguística. Investigar como a fala é produzida e compreendida sempre me deixa
com mais vontade de aprender.
A leitura semiótica do Brasil antes de Lula, pensando em Charles Sanders
Peirce, era o da elite dominante. Dos poucos ditando as regras para os muitos, do pobre como
coadjuvante, do governo que não enxergava que o país era de todos os
brasileiros, do povo que não tinha mais esperança, da falta de perspectiva, do sofrimento.
O quadro pós Lula é esse
que vivemos. Oportunidades para todos, um país de todos, gigante no tamanho e
na força de seu povo que agora tem o papel de protagonista, do catador que um dia pode ser doutor, da mãe que tem seus filhos na faculdade, do pai que tem emprego, da
criança que tem escola, da prosperidade.
Um país cinzento antes de Lula e com cores vivas pós lula. Esse é o País que sempre sonhei e é esse país que é o estou
vivenciando.
ATENÇÃO: As palavras na cor vermelha
constam no texto
originariamente, mas os destaques são deste BLOGUEIRO.